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Como o prazer de brincar na solidão revela mundos escondidos dentro das crianças?

Hoje de manhã eu fui à praia.  Enquanto caminhava na calçada, vi um menino e a mãe dele sentados em um banco de pedra. Ela de frente para o mar e ele de frente para ela, como numa sela de cavalo: uma perna em cada lado. O menino brincava com três dinossauros que ele deslocava de um canto para o outro, entre rugidos, ataques, defesas, saltos, esconderijos. Reduzi os passos para assistir à cena: ele na agitação da atmosfera jurássica e ela no silêncio do horizonte.

Voltei para a casa pensando em como as crianças são naturalmente imaginativas. E como, para nutrir a imaginação, é importante terem espaço para brincarem sozinhas. Lembrei dos meus banhos de chuva, brincadeiras na rua, peças de teatro, clubes com missões sigilosas, com vizinhos, primos, colegas, amigos.  Em seguida, lembrei dos meus momentos solitários, em que retomava o fôlego, me aplacava, me saciava. 

Dois momentos, mais precisamente, se repetiam e me marcaram. Um deles era quando eu passava horas deitada de braços abertos na grama, esperando que algum bicho pousasse ou se aproximasse de mim, inspirada por uma estátua de madeira enorme de São Francisco em nosso jardim.  

Outro momento era na estufa que ficava na parte de trás da casa. Dentro dela tinha uma pedra grande e um dos meus maiores prazeres era sentar ali com um caderno, escutar e escrever pensamentos, poesias, histórias fertilizadas na solidão.  

Gostava muito de subir numa árvore na calçada e ficar olhando ao redor. De lavar a escultura de uma mulher, tirar o limo e vê-la ressurgir da cor do mármore.  De muitas solidões.
Minhas filhas, por sua vez, adoravam brincar comigo, com o pai, com os amigos, primos, vizinhos, e sozinhas também. Ora com potes de cozinha, que encaixavam e desencaixavam, ora com panelas e colheres que viravam instrumentos musicais, ora com massinhas, que viravam frutas, animais, gente, ora com pintura a dedo, ora com canetinhas coloridas e papéis, ora com bonecas ou animais de plástico, ora com palitos de picolés, que se transformavam em casas, barcos, personagens.

Elas não estavam nem se sentiam abandonadas. Assim como acontecera comigo, viviam, fortaleciam, experimentavam as suas existências.  Davam vida a objetos, criavam vozes, sentimentos, atitudes, histórias, sendo, ao mesmo tempo, duas ou mais personagens. 
E sabiam que eu estava ali, em algum lugar – do lado, atrás, próxima ou distante – ao alcance. Aqueles eram momentos de cumplicidade, descobertas, revelações, sem interferências. E assim tecíamos intimidade, respeito, encantos. 

É claro que os momentos compartilhados também são essenciais: dos mais corriqueiros, como assistir a filmes, fazer biscoitos, ir à padaria, visitar uma avó, aos mais inusitados, como ao descermos até a praça para procurar bichinhos escondidos nas folhas, abandonarmos tudo para nos deslumbrarmos com a lua, colhermos flores caídas para montarmos buquês, catarmos pedras para pintarmos, fazermos castelos de almofada para morarmos, embarcarmos em histórias que líamos nos mais diversos lugares.  

Afinal, gostar de estar sozinha não significa desgostar de estar com os outros. É também gostar de estar com a sua pessoa e não depender de companhia para se sentir bem. É se desenvolver, se conhecer, se cuidar de maneira única, espontânea, verdadeira, autêntica.

Tenho visto poucas crianças se entreterem sozinhas, sem estímulos externos. Com a preocupação de ocupá-las de forma considerada produtiva, elas, de fato, estão ocupadas o tempo inteiro, cercadas de opções, sem direito ao tédio. Dentre as ocupações jamais está brincar de forma livre. Os pais buscam caminhos para os filhos desenvolverem a inteligência, a autonomia, a empatia, a socialização, e, para isso, pesquisam, se endividam, se descabelam, e, o mais grave, atropelam o seu caminho mais genuíno, natural e espontâneo.  Encobrem os pequenos de cursos, jogos com propósitos específicos, explicações, demandas, telas, interferências.  Tolhem o seu desabrochar naquela redoma.  

Para a criança conquistar o seu espaço, conhecer e desenvolver a sua essência, precisamos permitir, incentivar, atiçar, provocar nela o desejo de ter as suas vivências sem ninguém perto.  Deixá-la desfrutar do prazer de se bastar, de se perceber criando, desbravando o mundo, sem a ideia nociva de que a sua felicidade depende de ter alguém ao lado.  Sim, ela sabe que estamos ao seu alcance para acolhê-la, escutá-la, ampará-la, ainda que não esteja nos vendo.  A criança precisa ter intimidade consigo mesma para, além dos momentos da solidão desejada, contar com a sua própria pessoa nos momentos de solidão indesejada ou inesperada.  Aprender a brincar sozinho é um convite ao que a vida nos traz de mais belo: sentir, contemplar, imaginar, criar, inventar, enxergar, entregar-se, existir. Ter a sua imaginação, os seus pensamentos, os seus recursos para viver a espera numa fila de banco, um dia no aeroporto com voo cancelado, um susto arrebatador, uma dor íntima, uma alegria secreta.

Hoje de manhã eu fui à praia. O mar estava gelado e revolto. As ondas estouravam e, quando terminavam de se desmanchar, a areia ficava coberta de buraquinhos de tatuís. Da hora em que cheguei à hora em que saí, uma menina de uns três anos permaneceu ali na beira, de pé, com os olhos bem abertos, atenta ao oceano. Depois de cada estouro, assim que o mar puxava de volta as suas águas, ela dobrava ligeiramente os joelhos, curvava as costas, posicionava os olhos a milímetros do primeiro buraco que aparecia à sua frente e só se reerguia para esperar a nova leva.  Que mundo será que se escondia ali, que ela não podia perder por nada?  

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A leitura e a escrita são vias para o prazer de estar só.  Elas nos ajudam a despertar, organizar, descobrir, acolher pensamentos, ideias, sentimentos.

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